Tinha iludido a fome com uma simples sandes que lhe pagaram e um copo de
leite que por esmola lhe deram na leitaria; Depois lembrou-se de atirar pedras
ao lago do jardim e vê-las saltitar pela superfície para ver o efeito que
faziam, ou assim esquecer a sua má sina de miúdo de rua.
A ave que cantava melodias
de encantar à namorada do galho ao lado irritou-o e atirou-lhe uma pedrada. Os
pombos que debicavam no chão algumas migalhas esvoaçaram de medo. O cão, que
vivia nas mesmas condições dele, ladrou lhe uma ameaça de mordidela. Arreliado
por algo que o seu silêncio não revelou, lançou uma outra pedrada à árvore em
frente, deixando nela a marca da sua revolta.
Vagueou, horas a fio, pelas ruas, pelo
jardim vazio de olhares mundanos, como que à procura de novos desafios, livre
de quaisquer criticas ou regras, ordens por cumprir, ou tarefas por fazer. As
outras crianças da sua idade brincavam juntas no pátio da escola, que ele se
punha a espreitar, como se desejasse ser como elas.
Criticava lhes os bibes, as regras, a obediência, mas gostava de as ver brincas juntas. Criticava lhes os deveres, as obrigações, mas tinha pena de não saber ler.
E como
sentia um vazio por dentro por não ter a vida ocupada, lançou nova pedrada à
ave da arvora do jardinsito ao lado da escola. A ave assustada continuou a
cantar noutro galho, indiferente à sua revolta, perdoando a atitude selvagem do
garoto e o jardim, de limpo virou lixeira.
Ambos
nutriam juventudes diferentes. Um florescia ordenado e limpo, embelezado pela
mão humana que o cuidava; o outro, embora a idade fosse igual, crescia numa
infância indomesticável e sem ninguém, roto e sujo, seguindo o seu próprio
instinto natural.
O primeiro
tinha histórias para contar: dos outros, dos que por ali passavam e deixavam no
tempo episódios vividos, a brincadeira das crianças, histórias de amor e ódio,
encontros fortuitos de velhos amigos, simples conversas de ocasião, aas casas
em redor, o seu conforto, que só as árvores escutavam.
Ele, um
garoto de rua sem eira nem beira, apenas trazia consigo uma história por
contar, uma vida curta mas já amarga, de pobreza e abandono, que apenas a rua
sabia de cor, mas ninguém ainda ouviu contar.