Tinha
iludido a fome com uma simples sandes encontrada no caixote do lixo, de manhã
cedo. Lavara a cara no charco onde os pombos bebiam a sua água e roubara-lhes o
direito de lá se lavarem. Depois lembrou-se de atirar pedras ao lago do jardim,
olhar os peixes e divertir-se com isso. E como nada tinha para fazer, inventava
histórias com as pessoas que passavam, situações ocasionais, reais apenas na
sua fértil imaginação.
A ave
que cantava melodias de encantar à namorada do galho em frente, que pousava ali
todas as manhãs, irritou-o com o seu canto e atirou-lhe uma pedrada; Arreliado
por algo que o seu olhar não revelava, lançou uma outra pedra à árvore em
frente, deixando nela a marca da sua revolta, como se de uma assinatura se
trata-se.
Todo o
jardim era seu, o seu lar, a sua escola, a sua sala de convívio, o sítio mais
movimentado onde se poderia orientar com alguma esmola que lhe dessem.
Depois vagueou horas a fio, pelas ruas
limítrofes, pelo jardim, vazio de olhares mundanos àquela hora, como que à
procura de novos desafios para a sua fértil fugacidade juvenil; um bom modo de
esquecer a sua condição, a solidão que o acompanhava.
A ave continuou a cantar mas noutro galho, indiferente à sua revolta,
perdoando-lhe a atitude infantil, como se tudo aquilo fosse menor e continuava
a contemplar a natureza em redor, as pessoas, o movimento, o garoto, o jardim.
Ambos nutriam juventudes diferentes. Um
florescia ordenado e limpo, embelezado pela mão humana que o cuidava e incutia
uma beleza rara. O outro, embora a idade fosse igual, crescia numa infância
selvagem, roto, sujo e sem ninguém, seguindo o destino a seu belo prazer.
O primeiro tinha histórias por contar,
muito embora variadas e soltas: histórias de amor e ódio, encontros fortuitos
de velhos amigos, simples conversas de ocasião, ou os que ali passavam e
deixavam no tempo episódios vividos; pequenas confissões, ou grandes dramas que
só as árvores escutavam.
Ele, um simples garoto de rua sem eira
nem beira, igual a tantos outros, trazia consigo um caso de abandono, uma vida
curta mas amarga, que apenas a rua sabia de cor e ainda ninguém ouviu contar.
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