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quinta-feira, 9 de maio de 2024

O Galdério


          Tinha iludido a fome com uma simples sandes encontrada no caixote do lixo, de manhã cedo. Lavara a cara no charco onde os pombos bebiam a sua água e roubara-lhes o direito de lá se lavarem. Depois lembrou-se de atirar pedras ao lago do jardim, olhar os peixes e divertir-se com isso. E como nada tinha para fazer, inventava histórias com as pessoas que passavam, situações ocasionais, reais apenas na sua fértil imaginação.

A ave que cantava melodias de encantar à namorada do galho em frente, que pousava ali todas as manhãs, irritou-o com o seu canto e atirou-lhe uma pedrada; Arreliado por algo que o seu olhar não revelava, lançou uma outra pedra à árvore em frente, deixando nela a marca da sua revolta, como se de uma assinatura se trata-se.

Todo o jardim era seu, o seu lar, a sua escola, a sua sala de convívio, o sítio mais movimentado onde se poderia orientar com alguma esmola que lhe dessem.

       Depois vagueou horas a fio, pelas ruas limítrofes, pelo jardim, vazio de olhares mundanos àquela hora, como que à procura de novos desafios para a sua fértil fugacidade juvenil; um bom modo de esquecer a sua condição, a solidão que o acompanhava.     

A ave continuou a cantar mas noutro galho, indiferente à sua revolta, perdoando-lhe a atitude infantil, como se tudo aquilo fosse menor e continuava a contemplar a natureza em redor, as pessoas, o movimento, o garoto, o jardim.

       Ambos nutriam juventudes diferentes. Um florescia ordenado e limpo, embelezado pela mão humana que o cuidava e incutia uma beleza rara. O outro, embora a idade fosse igual, crescia numa infância selvagem, roto, sujo e sem ninguém, seguindo o destino a seu belo prazer.

       O primeiro tinha histórias por contar, muito embora variadas e soltas: histórias de amor e ódio, encontros fortuitos de velhos amigos, simples conversas de ocasião, ou os que ali passavam e deixavam no tempo episódios vividos; pequenas confissões, ou grandes dramas que só as árvores escutavam.

       Ele, um simples garoto de rua sem eira nem beira, igual a tantos outros, trazia consigo um caso de abandono, uma vida curta mas amarga, que apenas a rua sabia de cor e ainda ninguém ouviu contar.

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