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quinta-feira, 9 de maio de 2024

Um Domingo Vulgar


     Hoje é domingo, o que só por si torna o dia feliz; pelo menos para mim que gosto dum intervalo entre duas semanas; mesmo se chovesse seria feliz na mesma, apenas por ser domingo e poder ficar mais um bocado na cama, a descansar depois duns dias de trabalho que sempre moem o juízo a uma pessoa.

        De tarde vou sair com a família, levar os miúdos ao jardim para tomarem um pouco de ar fresco e estarem em contacto com a natureza; Talvez o jardim não seja o mais indicado, é vulgar demais, habitual; devia variar, talvez ir para a mata, mas é tão longe, dá tão mau jeito; depois aquilo é tão mal frequentado pelos drogados e mulheres de má vida, que uma pessoa tem medo, receia pelos filhos e a mulher que também necessita de descanso, coitada.

        Se fosse outro podia ir à bola e deixava a família em casa, os filhos ao encargo da mulher e tudo que se lixasse, mas não.

       A gente tem que pensar nos seus, dar-lhes a conhecer o mundo à sua volta, relacionar-se com eles; afinal são a base de um sustento moral que nos mantêm de pé e nos dá força; embora, por vezes seja difícil manter a família unida; está tudo tão difícil que uma pessoa já nem sabe o que fazer e se não variamos torna-se a vida monótona, chata e cada um de nós tombando para o seu lado.    

       No meio os miúdos berram e chateiam, pedinchando sempre qualquer coisa, mesmo que não tenham fome, ou vontade de brincar com aquele brinquedo de que se lembraram; mas chateiam, chateiam e, no fundo são a nossa razão de ser. 

       A televisão dá um filme de guerra. A mulher na cozinha; eu ruminando um cigarro ao canto da boca, o jornal esquecido sobre a mesa em frente ao sofá; abstracto, perdendo-me em pensamentos vagos e desconexos, mais virado para o chato do que para a boa disposição.     

       Se, por mero acaso, o dia for de bola na TV e me apetecer assistir ao jogo, vira-se o mundo contra mim, a televisão em altos berros para esquecer os outros e um jogo, que acaba mal para mim, já não o vejo descansado.

       Fico nervoso, irritado, fumo quilos de cigarros e consumo litros de cerveja com amendoins e tremoços e a sala vira salão de clube. A janela fechada. O fumo é uma nuvem imensa pairando no ar, intoxicando todos, sem a mim me ralar minimamente.

       As únicas ocasiões em que alguma coisa pode prender a família em casa é um bom filme que agrade a todos e nos faça sentar no sofá, descansados, olhando o écran. A sala sem fumo nem tremoços e em vez de cerveja, duas bicas sobre a mesinha.

       Acabo por sair ao fim da tarde para beber alguma coisa mais, apenas por beber, espairecer um pouco; às vezes ela também vem quando tem tudo arrumado, ou lhe apetece sair. 

      Pobre mulher; de todos a mais sacrificada; tem a casa, a roupa, os filhos, eu, uma verdadeira dona de casa. Uma mulher com uma verdadeira beleza interior.

      Uma ocasião falou-se em fanfarras no coreto do jardim; não pude perder o espectáculo, só para ouvir música. Peguei na criançada, consciente de uma boa acção educativa e levei-os para assistirem a uma música que, felizmente, ainda consegue subsistir, dada a raridade de música de qualidade e as tendências serem diferentes.

       Fui alcunhado e agredido com nomes, atiraram-se a mim com amuos e caretas e tive que me resignar à minha infeliz ideia. Um antiquado que ainda gosta de música de província. Eles sabem lá o que é música!

       Concordo não ser esta a música a que estão mais habituados, ou a da sua preferência, mas queria incutir-lhes algum conhecimento mais, sobre os vários estilos de música, muito embora o cariz popular desta; infeliz ideia!     

       O que vale é que estes acontecimentos são esporádicos, senão as agressões psicológicas seriam bem maiores!

       A mulher nada dissera, assistira apenas. Era-lhe indiferente, ouvia perfeitamente qualquer tipo de música; não sei se por falta de ouvido, se para nos agradar a todos, mas creio ser esta a hipótese mais provável.

       O domingo era de sol, com as crianças entregues a si próprias, soltas do sacrifício de assistirem ao espetáculo, embora sob o nosso olhar, os ouvidos na música, umas pipocas à mistura a quebrar a concentração.

       Estava tudo exausto mas feliz, foi um dia diferente. Os garotos suavam.

        O regresso foi calmo, sem incidentes, com os dois calados, lado a lado no banco de trás olhando a rua. De caminho pago um gelado a cada um e nós bebemos uma bica, ela come um bolo. À noite o noticiário traz mais noticias e tudo volta ao normal.




* 2º Prémio de Conto “Ambiente Comcurso” 2002 da CML

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